No livro Story - Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro, Robert McKee estruturou alguns passos para a escrita de um bom roteiro, partindo da análise de mais de cem filmes. E um dos principais pontos do livro diz respeito a construção do personagem. Afinal, o que é mais importante: a trama ou o personagem?
Ao longo da história cada aspecto teve sua preponderância: Aristóteles considerava a história como o elemento principal e o personagem como secundário, mas, posteriormente, o romance inverteu o jogo, e o enredo e sua estrutura passaram a se destacar mais que os personagens. Apesar dessa dicotomia, McKee defende que essa distinção não deveria existir, uma vez que “estrutura é personagem e personagem é estrutura”. Eles seriam a mesma coisa, logo um não poderia ser mais importante que o outro.
Mas um outro aspecto poderia, sim, provocar uma discussão acerca do papel ficcional: a diferença entre caracterização e personagem, em sua revelação.
Caracterização é a soma de todas as qualidades observáveis de um ser humano, tudo o que pode ser descoberto através de um escrutínio cuidadoso: idade e QI; sexo e sexualidade; opção de casa, carro e vestimenta; educação e trabalho; personalidade e nervosismo; valores e atitudes - todos os aspectos da humanidade que podem ser conhecidos quando tomamos notas sobre alguém todo dia.
E a junção dessas características, para McKee, fazem com que uma pessoa seja única. Mas esses traços representam apenas a caracterização do personagem, e não o personagem em si. Para ele, o verdadeiro personagem é revelado nas escolhas que um ser humano faz sob pressão - quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira a escolha para a natureza essencial do personagem.
Seriam nas escolhas do personagem, mais do que em sua caracterização, que teríamos a sua verdadeira revelação: se ele é amável ou cruel, se ele é generoso ou egoísta, se é sincero ou mentiroso, corajoso ou covarde… E para o autor, o grau de comprometimento, pressão e risco do personagem frente a sua decisão influenciará diretamente em como enxergaremos seu caráter.
Se um personagem escolhe contar a verdade em uma situação em que uma mentira não lhe traz risco, a escolha é trivial, o momento não expressa nada. Mas se o mesmo personagem insiste na verdade quando uma mentira poderia salvar sua vida, percebemos que a honestidade está no núcleo de sua natureza.
Esse princípio que é fundamental par a vida se estende, então, para a narrativa cinematográfica: as pessoas não são o que parecem ser. Não importa o que elas digam, não importa como se comportam, a única maneira de conhecermos profundamente os personagens é através de suas escolhas sob pressão.
E é aí que um personagem pode ser cada vez mais interessantes ao público: se sua caracterização e suas escolhas forem condizentes, suas ações passam a ser previsíveis e pouco interessantes. Mas McKee lembra que isso não quer dizer que o personagem não seja crível. Ele seria apenas… chato.
Por outro lado, o contraste entre a caracterização e o verdadeiro personagem pode cativar o público. Como em 007, em que James Bond, após mais de 20 filmes, continua surpreendendo a audiência:
Bond gosta de encarnar o playboy: vestindo um smoking, adorna festas de luxo, com um coquetel dançando na ponta dos dedos, enquanto conversa com belas mulheres. Mas quando a pressão cresce na estória, as escolhas de Bond revelam que debaixo de sua aparência de playboy há um Rambo pensante. Essas demonstrações de heroísmo inteligente, em contradição com a caracterização de playboy, tornaram-se um prazer aparentemente infinito.
Você consegue identificar nos seus personagens favoritos esse contraste entre caracterização e decisões sob pressão? Conta pra gente aqui nos comentários, ou em nossas redes - Facebook e Instagram.
Referências:
Story - Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro, de Robert McKee