O que significa editar alguma coisa? De onde surgiu a ideia de interferir no processo de criação e captação? São perguntas como essa que essa série de artigos quer explorar.
Quando a gente pensa em edição, a imagem que vem à mente é de uma timeline lotada de cortes e edições, muitos efeitos e um editor ou editora com fones de ouvido, com uma, duas ou até três telas à sua frente, digitando freneticamente comandos no teclado do computador ou ainda fazendo controles mais finos com a ajuda do mouse.
Ainda que essa seja a cena mais comum dentro do audiovisual recente, acontecendo desde os grandes estúdios até ao profissional autônomo em casa, quando colocada em perspectiva, a história da edição fala muito mais sobre um processo que vai além da telas, mouses e teclados.
Durante essa série de artigos, vamos explorar um pouquinho do que é dito no curso Fundamentos da Montagem Cinematográfica. Serão uma série de artigos que vão passar pela prática e técnica histórica de edição e que, com certeza, vão te ajudar a entender a importância do editor e de que sua formação precisa ser completa.
Os Primórdios
Antes de falar sobre o vídeo em si, é interessante que a gente comece falando sobre como tudo isso começou.
Os estudos com câmaras escuras e sobre a natureza da luz já vinham sendo realizados há séculos. A projeção de imagens já encantava a humanidade há muito tempo. E não dá para falar sobre imagem em movimento sem antes falar de como o registro da imagem fixa mudou nossa percepção de nós mesmo e de como o advento da fotografia transformou a forma como produzimos e nos relacionamentos com o conteúdo, primeiramente visual, que manipulamos.
O começo do século XIX trouxe consigo diversas pesquisas feitas no ramo da luz. Não só a luz enquanto fenômeno da Física, mas da luz enquanto um artifício para se criar imagens e como ela alterava essas mesmas imagens. Essas pesquisas, de maneira geral, não eram fruto de uma só localidade, mas acabavam se desenvolvendo em paralelo em muitos lugares do mundo e tangiam várias áreas diferentes.
A fotografia não nasce como obra de uma só pessoa, mas ela é aprimorada enquanto conceito devido a pesquisas ora individuais, ora simultâneas, e que encontram seus pedaços distribuídos por toda história da ciência.
Grandes nomes da fotogragia
Joseph Niépce foi um inventor francês que conduziu um dos primeiros experimentos que se tem registro de uma “fotografia”, usando um processo complicado em placas de estanho que eram sensibilizadas com produtos químicos e expostos durante horas à luz solar. A Heliografia — “escrita com luz solar” —, como Niepce assim a nomeou, foi o processo que produziu uma das primeiras imagens com um conceito muito próximo do que temos por fotografia hoje em dia. (Imagem abaixo)
Louis Daguerre, outro inventor francês, amigo e sócio de Niépce, aprimorou o processo do amigo, reduzindo sua exposição de horas para alguns minutos, dando-lhe o nome de daguerreotipia, de onde se retirou o daguerreótipo, uma das primeiras “câmeras fotográficas” que tiveram uma aplicação comercial.
No outro lado do Canal da Mancha, William Henry Fox Talbot desenvolvia pesquisas importantes com papel sensibilizado com cloreto de prata, invento que funcionava com a lógica muito próxima do processo fotográfico que usa película.
Cada pessoa nesse ramo contribuiu de alguma forma para que a fotografia ampliasse sua atuação, deixando de ser um assunto meramente restrito aos laboratórios e aos cientistas e caminhando em direção ao grande público.
Um desses nomes, responsável pela popularização da fotografia, é George Eastman, fundador da mundialmente famosa Kodak, que juntando todos os conceitos desenvolvidos até o fim dos anos 1890, fez com que a fotografia atingisse as massas, tornando-a popular e mais acessível. É com Eastman que a película fotográfica é inventada, simplificando muito o processo da obtenção de imagens através da luz. A fundação da Kodak e invenção da película de filme são inventos que marcam o início de uma era na qual a imagem seria essencial.
O Surgimento do Movimento
Já mais acessíveis ao grande público, as câmeras e as fotografias passaram a ser alvo de grande experimentação do público que as adquiria.
Em 1878, Eadweard Muybridge usou câmeras estáticas para produzir fotos que simulassem o movimento. Fotografando um jóquei em seu cavalo enquanto esse se movia, ele captou várias imagens que compunham uma ideia de movimento do correr do cavalo. No ano seguinte, Muybridge inventou o Zoopraxiscópio, um disco que continha cada fotograma de maneira sequenciada e que, ao girar, criava a ideia de movimento.
O mais interessante de notar aqui, com o esforço de Muybridge, é o nascimento da ideia da simulação do movimento. É a tentativa de usar um meio, a fotografia, para criar outra coisa, algo que estava além da ideia estática que essa criava.
Outros nomes vieram, como Etienne-Jules Marey, com sua Arma Cronofotográfica, que permitia a gravação de “incríveis” 12 fotogramas por segundo — processo que ele aprimorou depois, conduzindo filmes em câmera lenta que permitiram o estudo em várias áreas.
O francês Louis Le Prince, por sua vez, é conhecido pela primeira câmera-projetor de cinema, em 1888, além de ter produzido o que é considerado o primeiro filme do mundo, o Roundhay Garden Scene, de 1888.
O Filme Como Entretenimento
Do outro lado do Atlântico, pessoas como Thomas Edison já promoviam invenções dentro da área de projeção de imagens, que haviam sido desenvolvidos dentro do Edison Laboratories como o Cinetoscópio, um projetor de pequenos filmes em curta-metragem, exibidos em loop, ao preço de uma moeda. O material era captado pelo cinetógrafo, cuja patente também pertencia a Edison—embora fossem invenção de William Kennedy Laurie Dickson.
Os salões onde vários desses equipamentos eram instalados passaram a ser um ambiente de entretenimento entre as pessoas que ali estavam, e esse foi um marco para a produção cinematográfica da época, contribuindo ainda mais para a transformação do cinema para algo de apelo ainda mais popular.
Essa ideia de entretenimento do público foi o que também motivou os irmãos Auguste e Louis Lumiére a criarem em 1895 uma câmera que também era o projetor dos filmes captados: o Cinematógrafo. Eles promoveram exibições públicas de seu invento, projetando pequenos trechos de cidadãos franceses saindo de fábricas ou ainda ainda da chegada do trem à estação.
O encantamento do público com a invenção e todo o alarde que se fez em torno dele fez dos irmãos Lumiére os “pais do cinema”.
O Surgimento da Edição
Vale lembrar aqui que depois da “descoberta” que o registro das imagens proporcionaram, o conteúdo que era captado ainda era muito vinculado ao cotidiano das pessoas, captados todos de maneira contínua e sequencial. A grande novidade ainda era, de certa forma, restrita a uma certa imobilidade, estando fixa na sequência e na posição da câmera diante do objeto que era captado. Como a em La Sortie de l’usine Lumière à Lyon, de 1895, feito pelos irmãos Lumiére.
Dentro desse cenário, os recursos que poderiam, ainda, permitir certa edição do material eram a tesoura e a cola para separar e unir pedaços da película de filme.
É em 1898 que Robert W. Paul produz “Come along, Do”, que é considerado o primeiro filme editado, por conter duas cenas diversas. Ainda que o vídeo em si fosse simples, contendo um minuto à sua época, dos quais poucos segundos hoje restaram, a obra fez vislumbrar uma possibilidade diante do que poderia ser feito audiovisualmente com aquela invenção em termos narrativos.
Por mais que a noção da edição enquanto processo de transformação do filme seja muito presente para nós hoje, quando Paul o fez ele literalmente explorava um mundo novo e uma linguagem totalmente nova.
Diferente do teatro, no qual a transição de ambientes ainda é importante para compreensão do conteúdo, aqui o corte era a própria transição; e ao invés de fazer com que esse conteúdo perdesse informação, ele justamente ganhava informação e se enriquecia.
As primeiras técnicas de edição
É muito complicado tentar fazer o exercício de se colocar no lugar de um produtor de conteúdo do início do século XX em termos de vídeo. Não havia muita referência — para não dizer nenhuma — sobre como algo poderia ser representado na tela. Mais do que isso: era um desafio contar as diferentes histórias usando poucas ferramentas que permitissem a criação de uma estética minimamente razoável.
Como alternativa a essa realidade, o uso da dupla exposição como técnica surge como recurso, expondo um mesmo filme duas vezes a fim de criar efeitos especiais — outra novidade —, como “fantasmas” ou criando “gêmeos idênticos” baseados no mesmo ator ou atriz. Um exemplo desse recurso é o filme Scrooge (Or Marley’s Ghost), de 1901, do diretor Walter R. Booth, que foi o primeiro filme a trabalhar com intertítulos — quadros pretos com informações sobre a cena ou sobre diálogos. (Para os apressadinhos, o efeito é visível no mínuto 1:38 do vídeo abaixo)
O intercut, uma espécie de corte seco entre tomadas, também surgiu nessa época, fruto da experimentação dos primeiros cineastas, atuando como uma grande novidade narrativa, já que não havia referência anterior a qual se apoiar para produzir conteúdo.
O uso do contra-plano, que consiste em mostrar uma mesma ação por mais de um ângulo também surgiu como novidade inovadora nessa época. Um filme que mostra ambos efeitos é Attack on a China Mission, 1900, de James Williamson.
Foi nesse período que se descobriu que a combinação de dois planos diversos favorecia a criação de contexto entre as cenas que eram mostradas, e essa foi uma inovação em termos de linguagem para o cinema: a partir desse momento o cinema deixa de ser meramente registro para ser algo que tem um poder narrativo muito próprio.
Algo que é válido de ser citado é que
a noção de roteiro ainda não era sólida nessa época, começo de 1900, aparecendo de maneira mais nítida já no começo da década seguinte.
Os Primeiros Grandes Sucessos da Edição
Diante da efervecência do momento, alguns títulos produzidos no início do século XX ganham notoriedade pela aplicação de uma técnica muito refinada, principalmente quando se leva em consideração o contexto e a quantidade de recursos disponíveis à época.
Com o cineasta americano Edwin Porter essa noção de edição como compositora da obra ganha real valor. Em Life of an American Fireman, de 1903, a vida e rotina de uma unidade de bombeiros americanos no momento do seu chamado ao dever é retratada, e ela combina uma série de cenas e locações diferentes em uma montagem que leva em consideração a construção da história que o autor queria passar, isso feito através do registro dessas locações e da relação das personagens com ela.
Foi ele quem introduziu, praticamente, a noção de edição paralela: duas cenas que acontecem simultaneamente que são intercaladas entre si, dando a noção ao público de sua simultaneidade.
É o mesmo Porter quem vai, no mesmo ano, inclusive, produzir The Great Train Robbery, também em 1903, usando as mesmas técnicas inovadoras de edição e adicionar algo que, até ali, era praticamente inédito: movimentação de câmera.
Outro nome que não pode ser cortado — trocadilho — é o de Georges Méliès. Mágico de sua época, ele se encantou com o trabalho dos irmãos Lumiére logo que viu e percebeu o uso do cinema como meio de contribuição ao trabalho que ele já desenvolvia com o público. É com Méliès que o vislumbre pelo lúdico passa a ser explorado de maneira mais ampla.
Foi com essa fluidez que Méliès já experimentava em sua vida artística, somado aos seus conhecimentos dentro da fotografia e da novidade do cinema, que ele implementou recursos e formas à linguagem cinematográfica de suas produções, usando sua bagagem para produzir peças únicas.
Uma de suas obras mais conhecidas é Le Voyage Dans La Lune, 1902, considerada a primeira obra de ficção científica cinematográfica. O filme inova ao narrar uma história ficcional sobre uma viagem espacial de maneira muito lúdica e fantasiosa: para se alcançar a Lua é só disparar uma bala oca com humanos até ela.
Para criar isso, Méliès inclusive recorreu ao recurso de colorir os frames de seu filme, um por um, de maneira que o filme como um todo pudesse ter cor em sua exibição, algo que realmente mudava a experiência do público, acostumado ainda ao filme preto e branco.
Por mais infantil que a ideia possa parecer, a maneira com a qual Méliès estruturou isso tudo, com grandes cenários, com figurinos muito caprichados e com uma proposta ousada — chegar à Lua —, Méliès faz jus ao seu título de ser pai do cinema ficcional.
É por meio da edição e atuação de Méliès que o cinema ganha um status muito forte de arte, deixando de lado um pouco o seu lado mais factual para estabelecer novas relações de entretenimento e ludicidade.
Bom, por hoje é só. Mas no próximo artigo falaremos das primeiras regras de edição e de como elas mudaram a forma de se contar histórias no cinema. Até lá.