São raros os encontros entre grandes cineastas que ficaram imortalizados em livros ou documentários. Para nossa sorte, a série de entrevistas de um dos maiores cineastas franceses - François Truffaut - com um dos gênios do suspense - Alfred Hitchcock - deu origem a um dos poucos livros verdadeiramente obrigatórios para os estudantes de cinema: Hitchcock/Truffaut.
Em 1962, os cineastas combinaram a realização dessas entrevistas, em que, durante oito dias, em uma sala dos estúdios da Universal, em Los Angeles, Hitchcock falaria sobre o processo de concepção de seus filmes. O encontro foi sugestão de Truffaut, que tinha o desejo de escrever um livro sobre o mestre do suspense.
Fraçois Truffaut fez parte dos Cahiers du Cinéma, uma revista de crítica cinematográfica francesa que enxergava um autorismo na produção cinematográfica norte-americana, como Orson Welles e Alfred Hitchcock. A crítica americana e europeia, porém, não enxergava os mesmos atributos no cineasta, e foi isso que despertou a vontade de Truffaut em realizar essas entrevistas e transformá-las em livro.
Na carta que enviou a Hitchcock, ele descreveu o diretor como “um Hitchcock que todos reconhecerão como o melhor diretor do mundo”, e recebeu como resposta: “Caro sr. Truffaut, sua carta me fez chorar”. Após essa série de entrevistas, a amizade entre os cineastas se fortaleceu. Eles se escreviam, liam os roteiros um do outro, opinavam nos enredos, na escolha do elenco e exibiam seus filmes um para o outro.
Hitchcock/Truffaut foi publicado pela primeira vez em 1967 e narrava toda a trajetória do cineasta em formato de entrevistas. Filme a filme, o Hitchcock comentou sobre os aspectos formais de suas obras, apresentou seus contextos de produção, da elaboração do roteiro até o lançamento, as dificuldades técnicas, sua relação com os atores.
No prefácio da edição brasileira do livro, Ismail Xavier - um dos grandes pesquisadores de cinema no Brasil - relata a importância da obra: “O diálogo Truffaut/Hitchcock marca a idade de ouro da cinefilia como religião produtiva, na França, na Itália e na América Latina, fundamental no avanço do cinema moderno. A conjunção foi espacial, pois os cineastas que lideraram as transformações, ao proclamarem as virtudes intelectuais e morais da mise-en-scène, não sonegaram sua reverência aos mestres do cinema clássico, chegando, no caso de Hitchcock, a definir uma quase-identidade entre a compreensão de sua obra e a do próprio cinema” (Ismail Xavier).
Em 1993, o historiador Serge Toubiana encontrou na antiga produtora de Truffaut uma caixa repleta de fitas que contabilizavam as 27 horas de gravações com 500 perguntas que o cineasta francês havia feito a Hitchcock. Como forma de homenagem ao livro, Kent Jones reuniu esse material bruto e dirigiu um documentário, lançado em 2015, também intitulado Hitchcock/Truffaut.
No filme, o diretor reúne grandes cineastas, como Martin Scorsese, David Fincher, Richard Linklater e Wes Anderson, que falam sobre a influência de Hitchcock em suas obras e contam suas histórias pessoais com o livro. Além disso, o diretor ilustra os diálogos com as cenas dos filmes que são comentados, possibilitando uma nova experiência com os áudios das entrevistas.
Tanto Hitchcock quanto Truffaut traçam análises completas dos filmes e de cenas específicas. Em certo ponto, Hitchcock revela, até mesmo, um furo no roteiro de Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958) - eleito o melhor filme de todos os tempos pela Sight and Sound do Festival de Cinema Britânico (BFI):
Truffaut: O que incomoda o senhor? Hitchcock: O buraco na história. O marido que empurrou a mulher da torre. Como ele sabia que Stewart não ia subir a escada?
O livro foi relançado pela Companhia das Letras e pode ser facilmente encontrado nas livrarias, já o documentário ainda não chegou oficialmente no Brasil, mas abaixo você pode conferir o trailer:
Referências
Livros: Hitchcock/Truffaut (1967), escrito por François Truffaut
Filmes: Hitchcock/Truffaut (2015), dirigido por Kent Jones