Finalizando nossa série de artigos sobre os aspectos fundamentais da mise-en-scène, depois de tratarmos do Cenário, Figurino e Maquiagem, e da Iluminação, chegou a hora da encenação.
“Então sonhei um sonho tão bom: sonhei assim: na vida nós somos artistas de uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo. Nós somos todos os participantes desse teatro: na verdade nunca morreremos quando acontece a morte. Só morremos como artistas. Isso seria a eternidade?” (Clarice Lispector)
Encenação
A atuação não nasceu com o cinema. Na realidade, ele herdou uma tradição teatral desde o início do primeiro cinema. As primeiras diferenciações entre as duas formas de atuação se dão por uma questão espacial. Enquanto que no teatro o público está a uma certa distância do palco - e consequentemente dos atores ali presente -, no cinema a câmera - ou seja, o espectador - pode ser aproximar o quanto quiser dos personagens. Isso nos leva a uma questão fundamental para a atuação cinematográfica: no cinema as interpretações devem ser mais moderadas que no teatro, já que em um close o mínimo movimento do olho do ator será percebido pelo público.
Ao mesmo tempo em que a câmera pode estar colada ao rosto do ator, ela pode estar a quilómetros de distância, fazendo com que o personagem seja apenas um pixel na tela de cinema. Isso exige do ator uma capacidade de adaptação entre essas possíveis distâncias da câmera. Longe da câmera ele não será notado ao menos que faça grandes movimentos. Perto da câmera qualquer contração de um músculo pode ser notada.
Quanto a motivação na atuação, David Bordwell e Kristin Thompson defendem que existem duas possíveis dimensões: mais ou menos estilizada e mais ou menos individualizada. Os autores avaliam a interpretação de Marlon Brandon como Don Vito Corleone, em O Poderoso Chefão (1972), de Francis Ford Coppola, como individualizada, uma vez que cria uma imagem diferente do que de espera de um chefe da máfia, e intermediária quanto à estilização, por não ser nem tão simples e nem tão extravagante.
Essa análise quanto a estilização parte de uma premissa pautada no realismo, e que não é necessariamente a única forma de avaliação, já que as interpretações, realistas ou não, devem ser analisadas em sintonia ao contexto do filme. Alguns filmes exigem atuações não realistas, até mesmo porque colocam seus personagens em situações poucos prováveis de acontecerem em nossa realidade.
Quanto a individualização dos personagens nos deparamos com a estereotipização promovida pelo cinema clássico hollywoodiano nas escolhas de seus personagens. O casting era realizado por “tipos”, que se encaixavam ou não no papel. Bordwell e Thompson citam alguns deles: “o policial irlandês patrulhando, o empregado negro, o agiota judeu, a dançarina ou garçonete engraçadinha”.
E assim como tratamos sobre o neorrelismo italiano quando falamos sobre gravações em locações reais, a atuação foi peça fundamental desse movimento cinematográfico. Essas produções do pós-Segunda Guerra Mundial misturavam atores profissionais e amadores, e na época foram reconhecidas por se mostrarem, na palavra dos autores, como “representações quase documentais da vida italiana”.
Carlo Battisti, por exemplo, atuou em um único filme: Umberto D. (1952), de Vittorio De Sica. O filme é um clássico do cinema neorrealista italiano, assim como Ladrões de Bicicleta (1948), do mesmo diretor. O protagonista de Ladrões de Bicicleta, Lamberto Maggiorani também nunca havia atuado na vida e era operário de uma fábrica na Roma antes de ser convidado para interpretar Antonio no filme que venceu um Oscar honorário de Melhor Filme Estrangeiro lançado nos EUA em 1949.
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Referências
Livros: A arte do cinema: uma introdução, de David Bordwell e Kristin Thompson
Filmes: O Poderoso Chefão (1972), dirigido por Francis Ford Coppola Umberto D. (1952), dirigido por Vittorio De Sica Ladrões de Bicicleta (1948), dirigido por Vittorio De Sica